Em Atos 14:8-18, Paulo e Barnabé passam por um dos acontecimentos mais inusitados da Bíblia. A dupla chega à Listra, uma pequena “cidade de interior” que havia sido colonizada por romanos e cuja população adorava Zeus e Hermes, figuras da mitologia grega. Quando a dupla de cristãos cura um paralítico, os habitantes de Listra passam a acreditar que eles são estes deuses encarnados e tentam apresentar sacrifícios aos dois.
Paulo é visto como Hermes, um dos filhos de Zeus, padroeiro dos oradores e viajantes por causa de seu forte discurso. Era considerado também um dos deuses mais irreverentes da mitologia grega. Chamado de Mercúrio pelos romanos, no qual se origina o termo “hermenêutica”, e também é o patrono da ginástica, além de ser o guardião das portas do inferno.
Já Barnabé, que não é visto aqui com o mesmo nível de atividade que Paulo, eles vêem como Zeus, já que a divindade maior, em teoria, trabalhava menos que o deus inferior. Zeus era o maioral da mitologia grega, ocupava o trono dourado no Olimpo; tornou-se o deus dos deuses ao derrotar seu pai, o titã Cronos, com a ajuda dos irmãos Hades e Poseidon. Os romanos o chamavam de Júpiter.
Zeus e Hermes em Listra
“Um carvalho cresce ao lado de uma tília nas colinas da Frígia,” assim o poeta romano, Ovídio (cerca de 20 a.C.) inicia a narrativa do seu precioso mito, que foi enriquecido ao longo dos anos com as versões de Edith Hamilton, Paul Commelin e Thomas Bulfinch.
Eis que, diz este conto, de vez em quando, Zeus disfarçava-se e, em companhia do leve, comunicativo e divertido mensageiro dos deuses, Hermes, descia à terra a fim de testar a índole hospitaleira dos mortais.
Esse atributo – a hospitalidade – era especialmente caro ao soberano do Olimpo, pois, sendo ele mesmo um estrangeiro (kxenós), estavam sob sua proteção todos os vulneráveis que necessitam de abrigo em outras terras. Chegando à Frígia como se fossem viajantes que sucumbem ao cansaço, os deuses bateram de porta em porta, tanto nas casas mais abastadas quanto nas mais simples, rogando por alimento e algum lugar para repousar. No entanto, os habitantes inóspitos não quiseram levantar-se para recebê-los, todos se recusavam a dar-lhes guarida.
Frustrados e exaustos com tantas negativas, chegaram até uma humilde cabana, coberta de palha e, mais uma vez, bateram na porta. Surpreendentemente, ela se abriu, e de dentro surgiu uma voz muito agradável, convidando-os a entrar. Espantados, os deuses repararam que, apesar de simples, o interior do casebre estava muito bem limpo e arrumado. Apareceu então, um casal de velhinhos, em cuja expressão fisionômica transparecia benevolência.
Diligentes, eles deram logo as boas-vindas, não medindo esforços para que os visitantes se sentissem em casa. Muito atencioso, o marido, Filêmon tratou de trazer logo um banquinho para perto da lareira, ao mesmo tempo, sua caridosa mulher, Báucis, corria para buscar uma manta, enquanto ia contando que ela e Filêmon haviam se conhecido ainda muito jovens, que viviam naquele modesto lar desde o casamento e que sempre foram felizes: “Somos pobres, mas a pobreza não é uma coisa tão má assim quando não se tem grandes ambições, e uma boa disposição de espírito também ajuda muito.”
Modestos, de fato, Filêmon e Báucis não tinham vergonha de sua pobreza e para não a sentirem moderavam seus desejos, no que eram ajudados por suas boas disposições. Do casal emanava toda tranquilidade, aquela paz e sossego que somente nos verdadeiramente satisfeitos é notória. Alegre, Báucis abanou os tições da lareira, apressando-se a pendurar logo uma panela de cobre com água, enquanto Filêmon voltava do quintal com um belo repolho. Cortaram um bom pedaço de carne de porco já defumada e apressaram-se a preparar o jantar para os hóspedes.
Os dois velhinhos estavam tão encantados em receber os estranhos que demorou a se darem conta de que algo muito estranho estava a acontecer: a despeito de quantas taças já tivesse sido bebida, a jarra de vinho nunca se esvaziava.
Estupefatos diante dessa constatação, entreolharam-se amedrontados, abaixaram a cabeça e, cerrando os olhos, começaram a rezar em silêncio. Em seguida, com a voz embargada, rogaram aos hóspedes celestes que os perdoassem pela frugalidade da ceia ofertada e decidem sacrificar um ganso que tinham. Zeus os interrompe dizendo ser desnecessário tal sacrifício. E, confirmando que hospedaram deuses, teriam uma merecida recompensa, mas que puniria os que tinham negado guarida, desprezando os vulneráveis estrangeiros.
Os deuses decidem inundar tudo ao redor, poupando somente a cabana do casal de idosos, que foi transformada num majestoso templo, todo em mármore e ouro.
Ao indagar a Filêmon e Báucis o que mais desejavam, ouviu: “Permiti que nos tornemos vossos sacerdotes, e que passemos a tomar conta deste vosso templo – e, já que vivemos tanto tempo juntos, não deixeis que nenhum de nós sobreviva ao outro, concedendo-nos a graça de morrermos juntos. ”
Comovido com o que ouviu, Zeus os atendeu. E, certo dia, quando enfim, chegaram à mais avançada velhice, enquanto relembravam o passado, perceberam que folhas começavam a brotar, enquanto seus corpos iam se transformando em árvore. Em paz, por terem desfrutado de uma longa vida de amor e concórdia, conformados e felizes com destino com o qual foram agraciados e desejando que a mesma e única hora os levasse desta vida, ao mesmo tempo, disseram um ao outro: “Adeus, meu grande amor. ”
Pronunciadas essas palavras, entrelaçados, transformaram-se em árvores: ele, como um soberbo carvalho, e ela, uma magnífica tília. De todas as partes do mundo, chegam pessoas para admirar e honrar esse apaixonado casal.
A reação de Paulo e Barnabé
E então, o povo de Listra, ao ver os feitos miraculosos de Paulo e Barnabé, correm para recebê-los com toda honra. O mito deixou na sua cabeça que era preciso receber bem os deuses, fazer sacrifícios às divindades, ou haveria consequências. “Os deuses estão entre nós,” eles declaram.
Os missionários, ao ouvir isso, rasgam as vestes, uma prática judaica de humilhação, pois ficam consternados com a ideia de receber a glória e a honra que são devidos apenas a Deus. Essa é uma atitude firme de quem fez um grande milagre, mas não consegue viver em paz com a ideia das pessoas da cidade começarem a olhar para eles como os grandes realizadores da justiça e paz na terra, algo muito parecido com o que acontece nas igrejas que tem como sentido de vida a relevância na cidade, procurando atrair olhares para si e sobre os seus feitos.
Paulo e Barnabé abrem mão do momento mais esperado da existência humana. A hora dos aplausos, da glória
Paulo e Barnabé abrem mão do momento mais esperado da existência humana. A hora dos aplausos, da glória, do reconhecimento, do prestígio, do poder; pelo contrário, em imensa aflição, eles rasgam as vestes e se humilham. Eles vivem o evangelho de João Batista. “Convém que ele cresça e que eu diminua.” Viver nas sombras e não nos holofotes da sociedade é uma escolha de fé.
Eles deixam claro que são iguais, homens como qualquer outros. Eles têm em mente o princípio da igualdade, que não começou na Revolução Francesa ou nas lutas por direitos de negros e mulheres, mas em Gênesis 1, quando Deus nos criou à sua própria imagem e semelhança. Ao se igualar a todos os pagãos, Paulo e Barnabé abrem as portas para que a pregação aconteça, afinal, não sermos deuses, mas somos mensageiros do Deus altíssimo, pregadores do Evangelho de Jesus Cristo que se tornou homem e veio livrar o mundo de uma grande maldição chamada pecado.
A Mensagem do Evangelho Pregada
Os missionários dão, aqui, uma boa aula de apologética. Eles pregam o mesmo Evangelho, mas com uma linguagem diferente. Nas sinagogas por onde eles passavam, a mensagem era pregada a partir de toda a revelação do Antigo Testamento. Abraão, Moisés e Davi eram tomados como referência para a necessidade do Messias, mas nos ambientes pagãos ou gentios, onde as figuras da Bíblia pouco significavam, a pregação acontecia a partir da narrativa de um Deus criador, que ama sua criação e se relaciona com ela. Um Deus que sustenta e governa todo o mundo.
Este Evangelho confronta os deuses da cultura (seja ela grega ou moderna como a nossa). Paulo deixa claro que o anunciava para livrá-los das coisas vãs, sem valor, e para que eles recebam um Deus cheio de poder, riqueza, Bondade e amor: Deus que fez o céu, a terra e o mar, como também tudo o que há neles, um Deus de abundância para uma cidade que vivia nas coisas vãs dos ídolos de sua própria cultura.
Eles pregam o mesmo Evangelho, mas com uma linguagem diferente.
Um grande problema hoje em nossas comunidades cristãs é justamente que nos encantamos tanto com os ídolos e as culturas modernas que as envolvem, que pregamos um Evangelho morgado, fraco e sem a expressão da abundância que Ele tem.
Mas Paulo afirma que a verdade de Deus é eterna e imutável, bem como que o próprio Deus não deixou a si próprio sem testemunhos (a pregação é de um Deus que faz o bem) – dando chuvas do céu, dando alimento através das estações frutíferas – sem relutância ou discriminação – e enchendo o coração dos homens de alegria – demonstrações da sua bondade, providência, amor e graça.
Os deuses modernos
Zeus e Hermes hoje se limitam a figuras literárias em filmes e livros, mas nesses mesmos meios podemos encontrar personagens que representam os deuses e ídolos modernos. É o caso, por exemplo, dos super-heróis da Marvel, os Vingadores, que dominam a bilheteria do cinema atual.
Em heróis como Hulk, Capitão América e Homem-Aranha encontramos o poder do deus ciência. Os três foram alterados para superar as limitações físicas que tinham antes. Fazem coisas que seria impossível sem as mudanças científicas.
Já em Thor e Doutor Estranho há o misticismo. Eles são transcendentais, alteram a natureza e o tempo com os poderes. O Homem de Ferro engloba o deus tecnologia, usando invenções, sistemas e dinheiro para atingir seus objetivos. Há também o poder político, bem visto no Pantera Negra.
Os deuses mudaram, mas a busca da humanidade por providência e poder continua.
Os deuses mudaram, mas a busca da humanidade por providência e poder continua. Diante disso, precisamos aprender a fazer a leitura do nosso tempo com a grande narrativa do Evangelho, bem como nos encantar mais com o Deus criador e relacional que temos do que com a nossa cultura e sociedade.
Precisamos aprender a viver como homens que não se rendem às tentações do mundo moderno de “serem iguais a Deus” e celebram a simplicidade, a cumplicidade, o pão de cada dia, a boa poesia e até mesmo um jogo de futebol da Copa do Mundo, aproveitar as boas oportunidades que temos para anunciar o Evangelho verdadeiro que confronta os deuses de nossa época e aponta para um Deus muito mais abundante que as vaidades do nosso coração e de nossa cultura moderna.
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